Tiros Furiosos

19 de março de 2019

Fazia apenas dois dias que, na Argentina, Juan Carlos Ongan tomara o poder de Arturo Illia dando inicio ao governo militar quando o militar Charles Joseph Whitman tentou acionar o elevador no outro extremo do continente, na Universidade do Texas, Estados Unidos. O dispositivo não funcionou. Vera Palmer, da equipe da limpeza do local, vendo o que se passava aproximou-se e colocou que o elevador ainda não tinha sido ligado, mas que ela o ligaria para ele. Muito satisfeito e sorridente, Whitman agradeceu. “Você não tem noção de como isso me deixa feliz”. Dirigiu-se, então, até o 27º andar, ponto máximo que o elevador conduzia para depois subir as escadas atingindo um dos pontos mais altos da universidade em que cursara engenharia mecânica. De lá, em 1 de agosto de 1966, Whitman, portanto uma Sniper, matou 14 pessoas e feriu outras 32 em um comportamento de fúria que entrou para os anais de um tipo de crime extremamente raro, mas que leva a sociedade à perplexidade generalizada. Antes ele assassinara a mãe e a esposa em suas respectivas casas. Whitman foi morto por policiais, mas estava tão certo de que seu destino estava fechado que deixou uma carta de suicídio em que garante que amava a mãe e pede que lhe seja feito uma autópsia para se entender a causa de tantos pensamentos conflituosos e tanta enxaqueca. Esse exame post mortem revela a existência de um tumor cerebral maligno, um astrocitoma. Os médicos que realizaram o procedimento não conseguiram entrar em um consenso sobre a responsabilidade da doença cerebral nos crimes cometidos, mas reforçou o papel da neurocriminalidade, ciência que estuda até que ponto o cérebro influencia em comportamentos violentos.

Trinta e três anos depois outro norte americano Eric Harris, encontrou o amigo Brooks Brown no Estacionamento da Columbine High School. Surpreso de ver o colega que não via há algum tempo, Brooks questionou a ausência dele  em uma prova importante. Eric, debochado, disse “agora não importa mais. E Brooks, eu gosto de você. Saia daqui. Vá para casa”. Brooks Brown, conhecedor dos sentimentos misantrópicos de Eric Harris e Dylan Klebold deixou as dependências da escola assustado. E conseguiu escapar do massacre provocado pela dupla, que matou 13 pessoas e feriu outras 21. E, como no caso anterior em que estavam pronto para a morte, cometeram o suicídio. O massacre de Columbine parece inaugurar os casos contemporâneos de tiros furiosos em escolas (rampage school shooting). No mesmo ano, no Brasil,  em 3 de novembro, um estudante de medicina em uma faculdade tradicional de São Paulo adentrou a uma sala de cinema com uma submetralhadora 9mm portátil e matou três pessoas, ferindo outras quatro.

Excetuando o caso do atirador do cinema, esse tipo de crime era muito alheio às rotinas das cidades brasileiras, até que em 7 de abril de 2001, Wellington Menezes de Oliveira de 23 anos, invadiu a Escola Municipal Tasso da Silveira, no Realengo, local onde estudara, e matou doze alunos, deixando mais 16 feridos.

Então em 13 de março de 2019,  Luiz Henrique de Castro e Guilherme Taucci Monteiro acrescentam mais um episódio à triste estatística desse tipo de fenômeno. Invadindo a escola onde estudaram, Raul Brasil, portando armas de fogo e armas brancas, promoveram a chacina de sete pessoas e deixando outros feridos. O desfecho foi o mesmo. A morte. Dessa vez, primeiro, Guilherme matou Luiz Henrique. E depois se matou.

Na tentativa de compreender ações como essa, especialistas das mais diversas áreas se debruçam nos episódios para tentar entender e assim evitar novas ocorrências de um crime tão nefasto, covarde e ao mesmo tempo tão inexplicável.

Define-se o fenômeno de tiros com fúria a comportamento de se atirar em massa com alvos inespecíficos que ocorrem em espaços públicos envolvendo quatro ou mais mortes. A violência não deve estar relacionada a terrorismo ou roubos.

Estudos apontam que cerca de 60% de casos como esses envolvem pessoas portadoras de doenças mentais, mas esses dados ainda são muito imprecisos dada a dificuldade de se estudar esses eventos, uma vez que em muitos casos, o atirador acaba morrendo.

Podemos particularizar ainda um subtipo desse tipo de crime que ocorrem em escolas e que parecem trazer alguma padronização que tem chamado atenção da comunidade científica.

Partindo da observação dos eventos de Suzano e abrangendo para outros casos, vale destacar algumas questões: todos os crimes são cometidos por indivíduos do sexo masculino e o evento em si se divide de duas formas. A primeira é uma intensa e inadequada descarga de fúria, seguida de um suicídio. Além disso, essas pessoas estão fortemente armadas, sugerindo a intenção de matar uma grande quantidade de pessoas. No massacre de Columbine, a quantidade de bombas caseiras levadas pela dupla, se tivessem funcionado, seria o suficiente para atingir todos os alunos da escola e matando a maioria deles.

Em todos os casos temos também um inventário fúnebre em que o assassino assume a posição de herói e conclama para o surgimento de seguidores. Deixam cartas contando da preparação do ato, filmes e fotos portando suas armas e os últimos minutos. Esse repertório muitas vezes pode ser fonte de novas inspirações porque, dado o choque que eventos como esse causam, eles ocuparão grande lugar na mídia e isso pode levar a um contágio seguindo a lógica prevista por Lauren Coleman, que o chamou de Efeito Copycat. Por esse fenômeno, a fim de obter destaque na mídia e assim adquirir fama, outras pessoas podem seguir o mesmo caminho. Para se ter uma ideia da intensidade desse fenômeno vale lembrar que Steven King teve que suspender a impressão de seu livro Raiva por receio da intensificação de ataques em escolas.

Mas por que a totalidade desses eventos estão relacionados a homens ou meninos? Os homens são biologicamente mais propensos a agressividade dada a sua exposição ao hormônio da testosterona. Sabe-se que essa substância é responsável por algumas das características da masculinidade como alta busca por estimulação, que leva a busca aumentada por esportes, empatia diminuída e hiperatividade. Estudos apontam que exposição intra útero a níveis maiores de testosterona aumentam a incidência de comportamentos violêntos. É o que se observa, por exemplo, com mães tabagistas. A nicotina aumenta o nível de testosterona que é esperado naturalmente em meninos na 10 a 18 semana de gestação. Em um estudo de coorte (estudo de acompanhamento futuro dos participantes para avaliar se desenvolverão ou não uma característica) com 5966 indivíduos na Finlândia demonstrou que as mães que fumavam tinham duas vezes mais chances de ter filhos com registro criminal aos 22 anos. Outro estudo apontou que 72% dos filhos de mães que fumaram durante a gravidez, experimentaram violência sexual ou física.

Outro problema relacionado ao comportamento violento seria uma associação entre traumas de parto e descaso com o bebê. Uma amostra de 849 meninos canadenses, verificou-se que um aumento de complicações no parto com adversidade na família elevou a probabilidade de envolvimento em crimes violentos.

Cada vez mais a ciência tem estado em consonância em confirmar o período que vai desde o intra útero até os dois anos de idade como momento fundamental para o desenvolvimento de toda a base da personalidade. Filhos que ficaram quatro meses afastado de suas mães durante o primeiro ano de vida, também tendem a apresentar comportamento violento.

As relações das fases iniciais da primeira infância são fundamentais para o desenvolvimento de comportamentos positivos e melhor controle de impulsos agressivos. Em um dos depoimentos deixados por Eric Harris, ele comenta sua curiosidade de saber como a mãe receberia a notícia do evento. Ele imagina que ela se arrependeria por não ter entrado uma vez no quarto do filho porque estava tudo lá, visível e à disposição. As armas, as bombas. Ele sugere por essa ideia uma certa negligência materna na linha do “ela pouco olhou para mim.”

Indivíduos com relações parentais frágeis podem desenvolver baixa auto estima, alta auto crítica e ter muita dificuldade de interagir socialmente. Esses são presas fáceis para a prática de bullying pela total incapacidade de se defenderem. E os estudos tem apontado o bullying como causa isolada para ideação suicida e desenvolvimento de pensamentos de vingança e de violência.É importante se destacar que se entende como bullying não aquelas brincadeiras críticas que estamos tão acostumados a fazer entre amigos. Aquelas em que um xinga o outro e o outro responde na brincadeira. O bullying é uma prática que lembra a tortura e que envolve três personagens: o agressor, o agredido e a platéia. A comoção da plateia em torno da vítima que não tem condições psíquicas de se defender, configura-se como um episódio de intensa humilhação. Cho Seung-Hui, que em abril de 2007 causou 33 mortes no Virginia Tech, deixou um documento em que conclamava todos os fracos a se unirem. Os meninos de Columbine, quando entraram no refeitório pediram para que todos os esportistas se levantassem, sugerindo que os mataria primeiro. Um estudo feito posteriormente sobre os perfis dos alunos de Columbine sugeriu que os esportistas gozavam de um prestigio diferenciado por sua condição e por isso, muitas vezes, diminuíam os que não se destacavam como eles.

Esses indivíduos são também grande consumidores de imagens violentas, sejam pela internet, filmes ou vídeo games, mas tem que se tomar um cuidado especial para se interpretar esse dado, por exemplo. Não há nenhuma evidência científica de que o uso de vídeo game pode precipitar atitude de comportamentos furiosos de tiros em escolas. Assim como há estudos que dizem que os vídeo games podem ser vilões, outros atestam sua neutralidade. E outros ainda sugerem que esses jogos podem diminuir a agressividade. Vários desses assassinos, como o próprio Cho Seung-Hui ou Sulejman Talovic, que em 12 de fevereiro de 2007 matou cinco pessoas em Utah não tinham vinculo qualquer com vídeo games. Mas o consumo exclusivo de imagens violentas requer atenção. Tudo o que é feito com moderação tende a não gerar problemas. Gostar de filmes violentos, mas também assistir a um de comédia. Gostar de vídeo games, mas também de sair com amigos, tem um excelente prognóstico.

O fato é que quando acontece eventos como esse, a sociedade se reúne para questionar como prevenir eventos como esse. A ciência ainda não tem todas as respostas, mas ao menos uma certeza nós temos. Não existe remédio melhor do que pais afetivos, presentes e habilidosos em colocar limites em seus filhos. Ver o que o filho está fazendo, quais são suas companhias, como ele lida com amigos e com a escola e conferir suas ligações com as redes sociais.

No ano 2000, alguns cientistas e profissionais em conjunto com a Associação Americana de Psiquiatria anunciou alguns sinais de alertas para lidar com crianças que podem estar sofrendo algum grau de deslocamento social e pode precisar de ajuda. Desses destacam-se jovens com explosões de raiva, depressão, afastamento e isolamento social, rejeição dos colegas, fascínio por armas, mau desempenho escolar e falta de interesse na escola. Crianças com essas características podem estar precisando de ajuda.

Ainda está longe para compreendermos a real causa de eventos como esse. Infelizmente, embora raros, eles ainda vão acontecer e ainda dizimar algumas pessoas. A solução não está apenas na ciência, mas na sociedade como um todo. Será que a cultura da violência que marca o Ocidente é a melhor forma de nos representar? Será que o ritmo de vida que ganhamos com a internet, mantendo-nos ligado 24 horas e sete dias por semana é o melhor para nos relacionarmos com nossos filhos, amigos e família? Será que a cultura da intolerância que tem marcado o Ocidente mais ajuda ou atrapalha?

Vejam onde estamos e pensem: para onde vamos?

Vídeo em Destaque

vídeo

Mentalistas: Por quê você não consegue parar de fumar?

Artigo Destaque

artigo de notícias

O Enigma do sono

Mídia em Destaque

ÁUDIO

O tratamento do tabagismo